2.5.13

O monstro (ou o peixe) precisa de amigos

 É um admirável oceano novo onde sou pato e não peixe. Aproveito e exploro até ao tutano o pouco / os poucos que conheço, porque são poucos e bons. Como as oportunidades são poucas a exigência é grande e raramente falho pontaria. 
Mas não quero ser pau de cabeleira de tubarões, quero tornar-me, não um deles, mas parte deles, familiar ao seu mundo. É dificil arranjar metáfora com peixes que se adapte a esta minha posição, o António Vieira esgotou-as todas, malandro.
O entusiasmo é tão grande que tenho uma constante sensação de estar perto de roçar o ridículo.

Mas falemos de Peixe. Não é grande o testemunho que posso aqui deixar, mas é franco, apaixonado (strong word?) e acredito que possa servir de referência para alguns, principalmente para os que dúvidam do verdadeiro valor da experiência, comparativamente ao que tem de pagar porque, sejamos honestos, só a entrada pode já fazer moça nos magros bolsos de muitos. Vale a pena? Venham informados, preparados, procurem saber se não sabem, aproveitem bem e valerá cada cêntimo. Se não, não prometo nada. E venham acompanhados, para partilhar.

Foram dois dias, um e 1/4 para ser mais exacta, mas que me encheram por completo as medidas. Surpreendente a cada instante. Saberes e sabores, texturas, pessoas, ambientes. Foi inspirador e só espero aproveitar a onda enquanto se mantém alta. Foram quatro degustações, um showcooking com o the one and only Tomoaki, muitas primeiras vezes, duas harmonizações de vinhos da José Maria da Fonseca com dois chefs de veneração que puseram um sorriso absolutamente franco na cara e que de lá não saiu durante o tempo inteiro e mais além: de volta no comboio, admito a hipótese de ter aparentado vestigios de insanidade.
A primeira harmonização foi com o grande Mestre André, não o da Loja mas o da Taberna da Rua das Flores. Tivesse eu um restaurante e seria como o dele. Quatro pratos, quatro vinhos. Frescura e diversão no palato do início ao fim. 
No geral, o chef salientou a importância de, em cada prato, criar uma relação lógica, de natureza, entre o prato e o vinho. O humor do chef é transversal a tudo o que diz, faz, como faz e é cativante ver esse humor balançado com um brio, atenção e profissionalismo pelo que decide cozinhar, pelo modo como o faz e pelos alimentos que escolhe. Um designer de corpo inteiro.


Comecei pelo melhor: a Ostra Maria. A minha primeira vez com ostras. Acompanhado com um Roxo Rosé, as ostras são do Sado - o mesmo terroir do vinho (a tal relação), servidas numa taça de espuma de funcho, coentros e soda de água de tomate. Foi fantástico. Agora sim sei a que se referem os que falam do sabor a mar das ostras, contrabalançado com a frescura da espuma que lembra o nosso gaspacho. É beber / comer (porque se come as ostras com colher e se bebe a espuma) e ser transportada para o meu universo idílico estival.
Seguiu-se o Tiradito, nome influenciado pela comida de rua chilena. Acompanhado de Verdelho (not so good) A corvina (!) foi fumada em cataplana no carvalho das castas do vinho, servida sobre algas marinadas e molho djang, um agri-doce distinto coreano.
O Chipiron, denominado sob os udon noodles que o compõem, foram um 3º prato muito bem "metido". De sabores suaves e frescos, a massa foi envolvida na tinta de chocos e coentros, acompanhada com umas lulas tenras, quase cruas para conservar a humidade, salteadas com azeite e alho. Só não gostei tanto do vinho de 204 castas, que tanto que tinha, pouco me pareceu realmente ter.
Para fechar André deliciou-nos com uns Rojões de Cação com Amêijoas, que são nada menos que a melhor versão de Carne de Porco à Alentejana que comi. Capaz de converter qualquer purista de comida alentejana e/ou de carne de porco e/ou deste prato específico, o cação substitui a carne, sendo apenas salteado num pouco de banha e com os restantes temperos típicos do prato e as incontornáveis amêijoas, acompanhado por doces quadrados de batata-doce e mandioca fritos, finalizados com a pièce de resistance que é a ova de polvo seca ralada - "uma força do mar" parafraseando e subscrevendo o chef. O vinho a acompanhar foi o Qta de Camarate Branco Doce, de todos o meu preferido. No fim de tudo, não fosse a pouca vergonha da minha veia alentejana gulosa, pedi pão para "limpar" o prato. E pão veio para todos. Não tem de quê.

Next on the line, o grande Tomo e os seus peixes.
O cenário era entusiasmante, onde o bizarro cruza o exótico e o familiar, e peixes enormes (para mim) não identificáveis com objectos estranhos aparentemente atravessados na goela convivem lado a lado com outro mais conhecido pargo, ouriços do mar, flores, um simpático barquinho oriental para compor o cenário, flores, folhas e umas tangerinas encore que marcavam a presença da Quinta do Poial, que de resto foi a fornecedora oficial de quase tudo o que veio da Terra para os pratos do Tomo. E quando digo quase tudo refiro-me inclusive à palha de trigo usada para brasear um peixe galo. Se há chef que sei que iria ser sublime num evento como o Cook it Raw é o Tomoaki. Ele é ouriços do mar recheados com uma mistura de esperma de peixe e miso, ovas de ouriço e merengue, é geleia de miolo de navalheira servida dentro da casca inteira de uma tangerina, é o tal peixe galo envolto numa alga com arroz, fermentado, braseado e servido sobre um sorvete de azeda, com uma tempura de alho-francês e as pequenas folhas de wasabi e mizuna e a finalizar um rolo de fígado de tamboril, preparado à semelhança de foi gras mas embebido em água do mar em vez de leite, enrolado com erva chinesa (not sure what was that…) e alho aromático. 
No meio daquele pequeno show, porque foi realmente o show, Tomo falou-nos da importância enorme que os vegetais tem na cozinha japonesa - pessoalmente não sei se acredito que sejam mais importantes que o peixe, tal como ele disse, mas são certamente o elemento que pode elevar o estatuto a qualquer prato. Falou-nos do nosso peixe que é o melhor, sim, mas sacrilegamente manejados. Falou-nos dos ritmos e rituais da cozinha japonesa, dos meses de preparação e minutos de finalização, da importância do saber manejar uma faca e da repulsa à máquina por causa da forma como esta afecta os sabores e falou-nos também da importância do conhecimento das bases de qualquer gastronomia tradicional para depois poder aplicar essa técnica e mantê-la eternamente, ainda que com utensílios diferentes.

A segunda harmonização com o Paulo Morais foi encantadora. Sim, encantadora é a palavra. Porque o senhor, grande senhor, é encantador por muitas vezes desarmou-me completamente. Tendo a ser uma pessoa de gostos extremos no que diz respeito à comida, e se há coisa tão boa do que comer uma coisa familiar e saber exactamente àquilo que estamos à espera, é comer algo absolutamente inesperado. Algo que não me entregue os ingredientes de bandeja, algo de sabor único, paradoxalmente vivo e presente mas suave.
O Verdelho a abrir o repasto, acompanhou a Caldeirada que Paulo Morais serviu como primeiro prato foi a solução encontrada para não repetir "a grande caldeirada" que fez no primeiro PEL em que o Umai participou. O peixe foi finamente fatiado e colocado directamente no prato de servir, coberto depois pelo caldo a escaldar, onde acabou por cozer. Francamente boa, com o toque invariavelmente oriental da gengibre e da lúcia-lima e os sabores tipicos do tomate, pimento e coentros bem presentes. O pormenor da batata palha não é de todo de menosprezar, gostei do crocante. :)
O prato que se seguiu foi o Sporting, que me fez gostar ainda mais dele, e é nada menos que um California Maki desconstruído. Acompanhado por um Roxo Rosé, o prato era constituido por dois exemplares típicos do Maki, ladeados por uma versão com o arroz triturado no sifão e transformado em espuma sobre uma tempura de camarão com polme de alga nori e uma base de gelatina de pepino, abacate e alface, tudo com o ar "de sua graça" de wasabi com sumo de lima. Muito bom, principalmente a tempura e o ar, mas no meio do que já foi e do que vinha a seguir, não foi de todo o meu preferido. Gostei acima de tudo da ideia de desconstruir e das soluções encontradas. É a veia de design ali a pulsar.
O terceiro prato, ainda que prato não seja a palavra mais apropriada, desarmou-me completamente. Não tivesse comido mais nada de jeito no PEL e teria valido a pena por isto. Dentro de uma latinha dourada eis que dois pequenos macarrons verdes surgem do seu interior. A descrição do macarron, merengue de alga nori e recheio de fígado de tamboril, pouco espanta os presentes e tampouco a mim me encantou a perspectiva, que de macarrons sou pouco apreciadora. Mas quando se leva a boa a visão é outra. São as  três sensações do gosto que Savarin a passarem plenamente pela minha boca. O toque directo das duas texturas a quebrarem-se, misturarem-se e tocarem nos meus dentes e lingua e céu da boca. O gosto completo do leve e doce sabor do merengue a falar e a deixar-se envolver no creme ligeiramente salgado e incisivo do fígado de tamboril. E a confirmação de tudo no fim, a reflexão que leva à dilatação da pupila e a sons contidos por decoro e interjeições religiosas. Para melhorar, a acompanhar foi servido o melhor vinho de todos, um Quinta de Camarate Branco Doce. O mais curioso é que tinha também sido o meu preferido na harmonização anterior, sem que me apercebesse que era o mesmo desta vez.
De seguida veio uma fusão de muitas coisas boas: triologia de pão naan recheado com conservas: a primeira de cavala e kimchi, seguida da de salmão selvagem, miso e gordura de pato, e a terceira de bacalhau negro. Tudo com um molho de gemas, outra coisa que não consigo ler nos meus apontamentos, mirin e alho-francês e sweet chilli on the other side.
At last, but obviously not least, a sobremesa. Estava com algum medo do que de lá vinha. A sobremesa é aquele prato que queremos que nos faça feliz, mais não seja por ser o último. Não querendo exagerar, não há nada pior numa refeição que terminá-la com uma má sobremesa. Mas esta foi surpreendentemente surpreendente, passo a redundância. Achei incrível como todos os elementos, ainda que comidos em conjunto, se conseguiam destacar e distinguir na perfeição, sem que nenhum anulasse outro. O toque de gengibre no brownie que cobria o fundo da taça era claramente perceptível (o melhor brownie que já comi), a textura e intensidade eram as ideais e o sabor infalível. Depois o coulis e os pedaçinhos de morango vieram, literalmente, animar (como quem diz dar vida) aos sabores, mas simultaneamente tocados leve, levemente, como quem chama por eles (desculpem, mas isto realmente inspira) pela espuma de moscatel. Tudo finalizado com o crocante bem encaixado da touille de sementes de sésamo. Curiosamente só achei que estava uma coisa a mais: a bebida. Mais curioso ainda ser essa bebida um Moscatel, a minha bebida de eleição, este de Setubal, Colecção Privada DSF. Era doce demais, não senti que acrescentasse algo ao doce. Ainda assim, sublime.

Depois foram, obviamente, as degustações pela praça do Pátio da Galé.
A famosa Avelã3 do Avillez, com aquelas matreiras pedrinhas de sal a intensificar todo o sabor da avelã, very nice indeed.
O famoso prego de atum da Taberna da Esquina. Se os olhos comessem não escolheriam aquilo, decerto, mas é realmente bom. O molho do prego estava exactamente como se quer e a carne do atum no ponto.
A sobremesa do Assinatura… aqui evoco a 5ª emenda.
E as vieiras (outra primeira vez!) marinadas com guacamole do Avillez. Boas, mas não serviram nem como amuse bouche… queria mais, mas ao mesmo tempo é ridículo pensar que alguma vez comeria tipo 20 coisas daquelas numa refeição.

Peixes, vemo-nos para o ano. Eu agora, se me dão licença, vou para Londres passar uns dias e almoçar no Nopi.
See you when I see you! :)


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