22.10.14

manhãs e chávenas partidas.

A vida é feita de pequenas verdades criadas no nosso intimo que constituem fundamentalmente a nossa realidade pessoal. Qual semiótica, construímos signos cujo significante está à vista de toda a gente, mas significados pessoais e intransponíveis, que não sentimos senão através das nossas entranhas enroladas, do coração acelerado, do sorriso rasgado, da mente dispersa e das lágrimas escorridas.
Agarramo-nos a ideias para fundamentar a nossa fé e adquirimos e criamos incessantemente momentos, objectos, memórias, coisas que nos dão a sensação de pertença, de certeza e de eternidade. É o peso que nisso colocamos que dá substância à nossa vida. Mas ao contrário de quando criamos essa verdade, não controlamos a sua permanência e, enquanto continuamos agarrados à ideia dessa verdade, ela lentamente desaparece para dar lugar a outra coisa.
E ficamos ali, sós, sem aquela pertença ou certeza ou eternidade. E o chão cai.  Ficamos com o objecto e a ideia na mão, como uma chávena partida que já não dá para reparar, mas que não queremos deitar fora porque é linda demais, porque é dele, ou porque foi daquele momento, porque pertence a um lugar. Porque nos pertence e não queremos aceitar que dela já não bebemos mais.
Resta olhar para todas as outras que temos no armário e ver como são lindas essa que se partiu. Resta acima de tudo aproveitá-las e enchê-las com um belo chá, ou café, ou leite, estar grato por haver chávenas e por haver com que enchê-las. Resta arranjar mais.

E haverá sempre a manhã seguinte para delas beber.



Requeijão com mel, amêndoas tostadas e romã.



a ouvir: Changes - Seu Jorge

16.10.14

Sometimes you can have it all

Na indecisão entre escolher uma coisa e outra, é tão boa a sensação de saber haver também a hipótese de ter tudo.


Torrada de centeio com manteiga de ovelha, com marmelada caseira e com ovos mexidos com cebolinho. Earl grey a acompanhar.

Rye toast slathered with butter, topped with scrambled eggs and covered with proper homemade orange marmalade. Earl grey to go with it.



a ouvir: Strong - London Grammar

3.10.14

Outono




Há alturas certas para se falar das coisas. Há um ano atrás, quando fiz esta tarte pela primeira vez não era a altura certa. A altura certa é agora, neste terceiro dia de um mês que pouco me diz, pertencente à minha estação do ano preferida, em que o meu espírito está mais outonal que o dia lá fora. Em nenhuma outra altura Lisboa fica mais bonita do que agora. Um festival de tons quentes que se espalha pelas ruas aquecem o coração nos dias mais frios, enquanto as árvores se despem lentamente e criam os tapetes vibrantes que se formam ao longo de estradas e ruas e cantos e recantos e degraus das escadas da cidade. O barulho das folhas crack crack. A luz que me deixa manter os olhos bem abertos sem que os tenha de franzir - o Sol de Verão é uma chatisse, ando sempre com ar de quem está de mal com o mundo, testa e olhos e nariz franzido, e tenho para mim que essa tensão passa para dentro de mim.
A minha música soa a Outono. A minha poesia é escrita para o Outono. O meu Outono é de esperança, é quente, gosta de usar chinelos em casa, de comer castanhas lá fora e de caminhar incessantemente entre pinheiros e amoras, madressilvas e pinheiros, fazer piqueniques em clareiras clandestinas e os raios de Sol a passar entre as folhas dos carvalhos, cedros e pinheiros.

Esta tarte sabe a Outono. Dar-lhe uma dentada é teletransportar a mente para outro universo, o universo das coisas fáceis e puras, de aromas doces e temperatura amena, onde não há muito a dizer, apenas para sentir. Não pode ter outro destino se não para aqueles que me fazem feliz. A gratidão é uma coisa valiosa.




Outono (ou tarte de figos, uvas, maçãs e nozes)

Quando fiz isto há um ano atrás a pressa era tanta que não pesei ou medi nada. Tentarei fazer justiça a minha fraca memória e ser o mais fiel possível ao que fiz na altura, mas no fundo, e como disse ja varias vezes, tudo se resume à intuição: se a fruta for muito doce, a quantidade de golden syrup terá de ser obviamente menor, se os figos forem gigantes, terão de utilizar menos do que aquilo que indico, e por aí a diante.

1 receita de massa quebrada (esta é a minha go to, que nunca falha)
(500g) 4 maçãs reinetas doces médias, descascadas, descaroçadas e cortadas em gomos de 4 e 8
450g uvas brancas, metade cortadas ao meio e metade inteiras
350g  figos frescos médios, cortados ao meio, ou em 4, se forem maiores
200g de marmelo cozido com 2 c.sopa de mel
5 figos secos, cortados ao meio
50g de nozes, grosseiramente partidas
40-50g c.sopa de golden syrup (à venda no El Corte Ingles e na Glood)
1 ovo batido
açúcar mascavado


Ao fazer a massa quebrada, retirar uma mão cheia da mistura da farinha, açúcar e manteiga antes de adicionar os ovos e o leite. Reservar essa mistura e finalizar a massa.
Preparar toda a fruta fresca enquanto a massa descansa no frio durante no mínimo meia-hora e misturá-la cuidadosamente (para os figos não quebrarem) numa taça grande.
Pré-aquecer o forno a 200ºC. Engordurar uma forma de tartes minimamente alta (3cm de altura) e com 24cm de diâmetro. Pegar em 2/3 da massa e estender até ficar com cerca de 45cm de diâmetro, para que ao desenrolá-la sobre a forma sobre cerca de 10-12 cm fora da borda.
Colocar dentro da tarte as maçãs, uvas e figos frescos. Por cima espalhar as nozes e os figos secos e por fim adicionar o golden syrup em fio por toda a fruta.
Com cuidado, dobrar as bordas da massa para cima da tarte, de maneira a cobrir a fruta, deixando apenas um pequeno buraco no centro.
Pincelar a massa com o ovo e polvilhar com a mistura reservada da tarte e com o açúcar mascavado.
Levar ao forno durante 50-60 minutos, até a massa ganhar um tom intenso dourado, a fruta borbulhar e o cheiro inebriar a casa toda.


faz uma tarte de 22-24 cm, o número de pessoas é já muito subjectivo.




a ouvir: - We Are Fine - Sharon Van Etten